domingo, 21 de outubro de 2007

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A primeira vez que a vi foi um tanto quanto extraordinária. Ela toda era um tanto quanto extraordinária. Não muito bonita, nem muito bem vestida, mas de uma coisa toda que calava qualquer um que a olhasse.
Foi na sala de aula (e em que outro lugar haveria de ser?). Lá estava ela, ignorando completamente o professor, que parecia também ignorá-la. Talvez fosse um consentimento calado entre os dois, mas eram invisíveis ao resto da turma. Pois sim: lá estava ela, me encarando. De costas pro professor, me encarando. Eu que, distraidamente, tentava desenhar algumas curvas sedutoras no papel, me enchi de medo ao ver que ela estava me encarando.
Com um sorriso debochado ela levantou o rosto, que antes estava apoiado sobre as mãos, no encosto da cadeira. Me encarando.
- Será que és tão interessante quanto eu penso que é?
(Minhas falas não são importantes aqui. Até porque tudo o que lembro ter dito, agora me parecem resmungos. Deixarei somente que haja a voz dela, pois ela precisa ser toda, absoluta.)
Nunca esquecerei o jeito que os olhos dela falaram. Brilhando, cheios de curiosidade. E não eram por mim, infelizmente, eram pelo mistério que até então havia entre nós: dela para comigo. Pelo projeto que havia de mim: pela esperança.
De repente, ela virou a cabeça em direção à janela, sentindo o sol forte. De olhos fechados se virou e veio caminhando até mim. E de novo me assustou: ela estava do meu lado, me encarando.
- Aquele garoto finge que não me conhece. - disse ela, agora de olhos abertos - Passei a aula toda olhando pra ele, e ele fingindo que não me conhece.
- Acho que ele não está fingindo que não me conhece, acho que só não acha possível que seja eu. Afinal, nós nunca nos vimos pessoalmente. De qualquer jeito - e calou.
Calou quando olhou para mim, estreitando a vista. O que ela queria dizer com aquela mudez?
- Aquele garoto, olha.
Não entendi. Ela me olhou com uma cara mortificada. Um triste horror. Como se o fato de eu conhecer o garoto fosse a causa de milhões de mortes de criancinhas na África. Eu entrei em desespero, por dentro, é claro.
- Bem agora, bem aí!
- Te tornaste mundano.
- Conhecendo alguém que eu conheço: te tornaste mundano. Até alguns segundos atrás, pra mim tu eras Deus. E eu até relevei o fato de falares, o ideal seria que nos comunicássemos por telepatia.
- Pois sim! Deus, veja só! Morra com essa satisfação agora!
- Eu devia ter ficado calada. Me arrependo de tudo. Tudo, tudo, tudo, tudo.
E foi embora. Ah, mas se eu pudesse me encontrar naquele momento e silenciar a todos gritando: "Pois pra mim és tu, e o significado de ser tu é ser o universo! E tu, Universo, é tudo! Não te arrependas de ti!".
Não, foi melhor não ter dito. Eu acabaria me arrependendo de ser tão tolo, mesmo que por ela. Tolice é castigo.
Talvez tenha sido apenas um surto. Desses onde a alma fala mais alto. Mas ela nunca mais me disse coisas parecidas, e esse dia foi como inventado. Depois veio falar comigo: "Olha, é que me perco sempre. E me encontrei ali, te amei ali. Mas passou. Entende? Não sou assim, aquela não sou eu. Eu sou Laura. Só Laura."

Um comentário:

Anônimo disse...

*boquiaberto*