domingo, 28 de outubro de 2007

De que cheiro é?

Era de um modo tão sua que lhe doía o peito e sentia a pata de elefante massacrando o coração. Sendo muitas e nenhuma ao mesmo tempo, parada, parada, parada. E queria lhe, lhe, lhe. E queria ir, ir, ir. E queria perder. Tudo a perder, perder tudo.
A criança calçando o sapato alto da mãe: era ridícula. Ridícula de. De quê? De não viver.
E ao acordar, queria recriar e criar e pintar e repintar.
Que cheiro teria a vida? Que gosto seria?

- Criança, tua mãe não te contou? O cheiro e o gosto são tu. Cala-te, apaga a pintura, some: tu te bastas; e só tu do mundo, e o mundo só teu.


Foi - e explodiu como supernova.

domingo, 21 de outubro de 2007

q

A primeira vez que a vi foi um tanto quanto extraordinária. Ela toda era um tanto quanto extraordinária. Não muito bonita, nem muito bem vestida, mas de uma coisa toda que calava qualquer um que a olhasse.
Foi na sala de aula (e em que outro lugar haveria de ser?). Lá estava ela, ignorando completamente o professor, que parecia também ignorá-la. Talvez fosse um consentimento calado entre os dois, mas eram invisíveis ao resto da turma. Pois sim: lá estava ela, me encarando. De costas pro professor, me encarando. Eu que, distraidamente, tentava desenhar algumas curvas sedutoras no papel, me enchi de medo ao ver que ela estava me encarando.
Com um sorriso debochado ela levantou o rosto, que antes estava apoiado sobre as mãos, no encosto da cadeira. Me encarando.
- Será que és tão interessante quanto eu penso que é?
(Minhas falas não são importantes aqui. Até porque tudo o que lembro ter dito, agora me parecem resmungos. Deixarei somente que haja a voz dela, pois ela precisa ser toda, absoluta.)
Nunca esquecerei o jeito que os olhos dela falaram. Brilhando, cheios de curiosidade. E não eram por mim, infelizmente, eram pelo mistério que até então havia entre nós: dela para comigo. Pelo projeto que havia de mim: pela esperança.
De repente, ela virou a cabeça em direção à janela, sentindo o sol forte. De olhos fechados se virou e veio caminhando até mim. E de novo me assustou: ela estava do meu lado, me encarando.
- Aquele garoto finge que não me conhece. - disse ela, agora de olhos abertos - Passei a aula toda olhando pra ele, e ele fingindo que não me conhece.
- Acho que ele não está fingindo que não me conhece, acho que só não acha possível que seja eu. Afinal, nós nunca nos vimos pessoalmente. De qualquer jeito - e calou.
Calou quando olhou para mim, estreitando a vista. O que ela queria dizer com aquela mudez?
- Aquele garoto, olha.
Não entendi. Ela me olhou com uma cara mortificada. Um triste horror. Como se o fato de eu conhecer o garoto fosse a causa de milhões de mortes de criancinhas na África. Eu entrei em desespero, por dentro, é claro.
- Bem agora, bem aí!
- Te tornaste mundano.
- Conhecendo alguém que eu conheço: te tornaste mundano. Até alguns segundos atrás, pra mim tu eras Deus. E eu até relevei o fato de falares, o ideal seria que nos comunicássemos por telepatia.
- Pois sim! Deus, veja só! Morra com essa satisfação agora!
- Eu devia ter ficado calada. Me arrependo de tudo. Tudo, tudo, tudo, tudo.
E foi embora. Ah, mas se eu pudesse me encontrar naquele momento e silenciar a todos gritando: "Pois pra mim és tu, e o significado de ser tu é ser o universo! E tu, Universo, é tudo! Não te arrependas de ti!".
Não, foi melhor não ter dito. Eu acabaria me arrependendo de ser tão tolo, mesmo que por ela. Tolice é castigo.
Talvez tenha sido apenas um surto. Desses onde a alma fala mais alto. Mas ela nunca mais me disse coisas parecidas, e esse dia foi como inventado. Depois veio falar comigo: "Olha, é que me perco sempre. E me encontrei ali, te amei ali. Mas passou. Entende? Não sou assim, aquela não sou eu. Eu sou Laura. Só Laura."

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Que isso?

Se me abrissem, não encontrariam nada além da escuridão. E sangue.
Estou fadada a sangrar, e sabes, amor, nem quero mais.
E se sangrasse, seria pra longe.
Sangraria pra longe de mim, pra outra metade.

E alguém enxergaria aquilo como sangue?
Preto, preto, preto não é sangue.

Quero amputar essa minha parte deficiente.
Essa parte que me, me, me.

E nem a pata de elefante eu sinto mais...
Até parece que é vida-morte.
Só hoje morri quinze vezes, acreditas?
Ou pra mais disso, não contei.
Mas morri e morri de novo.
E nem dói, sabias?
Nem sentes.

Olhos, teus olhos, nem sentiriam.
Eu me evaporaria em frente a eles e nem notarias.
Nem lembrarias algum dia dos meus, os meus olhos.
A mais tênue lembrança seria tomada como sonho.

Pois agora quem não existe sou eu.
E nessa minha não-existência, vou não-sendo até a eternidade.

Como suportas ser tão?
E de tão, me fascinas.

sábado, 6 de outubro de 2007

De podridão e salvação.



Hoje vomitei dor. Me passei perfume para disfarçar e escovei os dentes para tirar o gosto.

Disfarçar o que? De quem? Pois já não sei que não sou minha? Que independo de mim mesma?
Não tenho mais nome, a partir dessa noite.

E meu maior medo é acordar (o) amanhã.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Título >Aqui<

O que mais me irrita é a minha incapacidade de distinguir as coisas. Porque tudo se mistura, vira pura sinestesia. E me sinto a pessoa mais ingênua do mundo.

A imprevisibilidade é a coisa pela qual mais espero. Preciso constantemente me lembrar de esperá-la com um escudo, ou então com pés bem fincados, pra não cair. Se bobagens me arrebatam, que dirá coisas de certa importância? Ou talvez as bobagens me abalem mais que coisas de real substância. Me desconheço.

Porque precisa ser tudo meu e para mim. E da onde vem tudo isso? A psicologia explica? Ausência, vazio, um nome. Nenhuma dessas palavras classifica o que tem impregnado em mim, como breu em lençol branco. É minha prodridão e minha salvação. E adoro.

Mas se me desconheço, como posso ser vício de mim mesma? A verdade é que não me desconheço, apenas não me sei completamente. Pois uma alma é vasta, e nas portas mais longes dos quartos mais distantes se esconde a imprevisibilidade.

É quando vem a ânsia. A angústia. Me falta a respiração. Me falta a respiração pela vontade de não ser, de não saber. Deve ser pela insignificância da minha vida diante de tudo. Tudo tão grande, os outros tão maiores, tudo tão distante e irreal. Bem aí! Me misturando de novo. Sinto o coração pular, e nem sei bem porquê. Deve ser o preto escorrendo e corroendo.